Um Tratamento Postural para a Dislexia?
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Autor: Alexandre Frey Pinto de Almeida, MD., PhD.
E-mail: fpinto@ufp.pt
Coordenador Científico da licenciatura em Terapêutica da Fala da
Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade Fernando Pessoa
Médico dos Serviços de Saúde da Universidade Lusíada
Director da Clínica Médica de Serralves (Porto)
RESUMO
A dislexia é uma dificuldade específica de aprendizagem da leitura que requer nomeadamente para seu completo diagnóstico a passagem dum teste de leitura e dum teste de inteligência no quadro de um exame médico e psicológico atento que comprove objectivamente as dificuldades de leitura e exclua como causa atrasos de desenvolvimento doutra natureza, défices sensoriais, doenças neurológicas e psiquiátricas ou problemas maiores de escolaridade. Sem prejuízo disto, a dislexia acompanha-se muitas vezes de disortografia e de numerosos “ soft-signs ” neurológicos, e Pinto de Almeida (1993) deu a conhecer uma associação igualmente frequente com o Síndrome de Deficiência Postural, parecendo confirmar-se que o tratamento deste S. D. P. associado por meio de reprogramação postural e lentes prismáticas de baixa potência surte efeitos muito apreciáveis sobre os próprios desempenhos de leitura. Graciete Serrano e Orlando Alves da Silva (1998) revelaram ter obtido resultados muito sobreponíveis num grande número de crianças disortográficas, possivelmente disléxicas, defendendo esta abordagem como tratamento de eleição para a maior parte dos casos e atribuindo as melhorias à correcção de disfunções proprioceptivas ocasionadas por vícios de posição, disfunções estas que terminariam por gerar bloqueios cognitivos susceptíveis de comprometer a leitura. Critica-se este ponto de vista contrapondo-se-lhe uma concepção da dislexia e do próprio S.D.P. enquanto “ síndromes de dislateralidade ”, ambos assentes numa disarmonia geral das funções hemisféricas que não somente o tratamento proposto como também outras intervenções bem sucedidas e que o potenciam poderiam ajudar a resolver.
I. INTRODUÇÃO: DISLEXIA E S. D. P.
A dislexia é uma perturbação específica de aprendizagem da leitura cuja detecção se faz já em idade escolar, quando o nível de leitura não progride de forma ajustada ao nível académico geral e ao restante desenvolvimento do indivíduo. O seu diagnóstico requer um exame médico e psicológico atento à anamnese escolar, pessoal e familiar, ao estado mental e a eventuais sinais neurológicos, se possível com avaliação do Q.I. e aplicação dum teste de leitura. Somente este último será capaz de objectivar as dificuldades experimentadas, permitindo confrontá-las com os desempenhos próprios daquela faixa etária e normas de leitura daquele ano de escolaridade. Não existe em Portugal nenhum teste de nível de leitura convenientemente aferido, nem mesmo o de Pinto de Almeida (1993) - o que não impede em absoluto um diagnóstico de rigor lançando mão dos materiais existentes, uma vez que bastará comprovar que o disléxico tem, por poucos que sejam, alguns resultados em parâmetros leximétricos francamente aquém do esperado, com um desfasamento de dois anos ou mais relativamente aos restantes resultados escolares, e já o teremos identificado como mau leitor (Pinto de Almeida, 2002).
Resta depois excluir défice intelectual, baixa acuidade sensorial, doença neurológica, perturbações psiquiátricas importantes ou mesmo absentismo ou defeitos do sistema de ensino como causa dos défices observados, e teremos desta forma mostrado tratar-se com efeito de dificuldade de aprendizagem específica, e não consecutiva a causas de outra natureza (“dislexia evolutiva específica”, dizia Critchley, 1975). Isto não impede que as dificuldades específicas de leitura se acompanhem muito frequentemente, como é natural, de dificuldades na escrita (“dislexia-disortografia”), e que encontremos até, por via de regra, pequenos sinais de imaturidade neurológica associados: maior frequência de canhotismo e ambidextria, lateralidades cruzadas, ausência de ouvido director e/ou de olho fixador e outros “soft-signs” que levam Pinto de Almeida (2003) a considerar como base fisiopatológica essencial para a dislexia uma disarmonia no funcionamento conjunto de ambos os hemisférios cerebrais.
Na verdade, mesmo quando se trata de semiologia clínica oriunda de outras esferas, tais como os défices de processamento fonológico ou as dificuldades de organização verbal do pensamento que muitos disléxicos tendem a apresentar, é raro que isso não possa ser imputado a disfunção hemisférica. Os estudos anatómicos vêm ao encontro deste ponto de vista: Galaburda & Geschwind (1980), nomeadamente, evidenciaram na população geral a existência de assimetrias entre os hemisférios cerebrais que são muito frequentes nas áreas da linguagem, sendo exemplo disto o que se passa ao nível do planum temporale , que tende a ser mais volumoso à esquerda do que à direita em cérebros normais – mas não no cérebro disléxico, o qual exibe pelo contrário muito sistematicamente uma quase simetria entre os dois hemisférios no tocante a esta área. Ao nível da maior comissura entre os dois lados do cérebro, por outro lado, têm-se encontrado com certa frequência estreitamentos do corpo caloso em disléxicos (cf. tb. Hynd & Semrud-Clikeman, 1989), e dum modo geral parece haver nesta população um tempo de transmissão inter-hemisférica bastante aumentado durante a leitura (Davidson et al., 1990). Michel Habib (2000), entre outros, dá-nos conta igualmente de numerosos achados microscópicos relativos a uma desorganização da citoarquitectura e mesmo ectopias corticais nas áreas da linguagem em cérebros disléxicos, consecutivamente a desordens da migração neuronal, sendo frequente que tais alterações assumam maior relevo no hemisfério dominante.
Em termos funcionais, será também de mencionar uma marcada assimetria da actividade dos dois hemisférios cerebrais durante a leitura, sugerida por diferentes dados electrofisiológicos (cf. Bakker et al., 1987) e neuroimagiológicos funcionais (cf. Wise et al., 1991, para a tomografia de emissão de positrões). Relativamente às funções sensitivas, e além do perfil audiológico que Tomatis (1972) pôs em evidência para a dislexia (um ouvido direito / hemisfério esquerdo menos discriminativo, conforme as provas de audição dicótica parecem efectivamente confirmar para estímulos verbais), a electronistagmografia permite observar inclusive, relativamente à função vestibular dos disléxicos, uma frequente preponderância direccional de um dos lados (Levinson, 1990), e o próprio Pinto de Almeida (1993) chamou a atenção, por meio de estudos campimétricos nos seus pacientes, para uma grande variabilidade mas também frequentes assimetrias na sensibilidade periférica aos incrementos de luz em ambos os olhos. O parâmetro “lateralidade” da bateria psicomotora de Vítor da Fonseca (1992) era também dos mais afectados neste estudo – dados estes que no seu conjunto parecem de facto sustentar a visão da dislexia como “síndrome de dislateralidade” (Pinto de Almeida, 2003).
Mais do que isso, Pinto de Almeida (1993) notou num conjunto de disléxicos a existência de sinais e sintomas que configuravam um Síndrome de Deficiência Postural primeiro descrito por Martins da Cunha (1979; 1987). Os critérios diagnósticos para o S. D. P. incluem: 1) sintomas cardinais – dor (especialmente raquialgias); perturbações do equilíbrio; alterações da percepção visual (astenopia, diplopia, metamorfopsias…); perturbações da somatognose, frequentemente com propriocepção alterada (para os sintomas não-cardinais, ver Martins da Cunha, 1987) ; 2) uma semiologia física característica, podendo incluir: assimetria facial; adopção de uma direcção preferencial do olhar com insuficiência da convergência tónica ocular; adopção de uma atitude postural cifoescoliótica estereotipada assimétrica, com rotação axial e apoio privilegiado sobre um pé; pontos álgicos característicos – semiologia esta que foi confirmada em diversos serviços do Hospital Universitário aonde se levou a cabo este estudo com disléxicos que associadamente apresentavam um S.D.P.
Assim notada esta associação, o autor colocou a hipótese de se tratar de entidades nosológicas relacionadas entre si do ponto de vista fisiopatológico: tratar-se-ia, em suma, de dois “síndromes de dislateralidade”, exprimindo ambos, embora de maneira diferente, uma mesma disarmonia geral das funções hemisféricas (cf. Pinto de Almeida, 2003). O autor levou a cabo consequentemente um estudo exploratório destinado a verificar uma eventual eficácia sobre a própria capacidade de leitura do tratamento já previsto e experimentado para o S.D.P. associado (cf. Martins da Cunha, 1988) – por reprogramação postural e correcção com lentes prismáticas de baixa potência (Pinto de Almeida, 1993). Por meio da reprogramação postural, o indivíduo passa a ter consciência dos seus erros inconscientes de posicionamento e aprende a corrigi-los; o recurso a lentes prismáticas permite coadjuvar este processo, surtindo mudanças no grau de tensão e por conseguinte também na propriocepção ao nível dos músculos extrínsecos do globo ocular, e corrigindo nomeadamente uma insuficiência da convergência tantas vezes associada (cf. Martins da Cunha e Alves da Silva, 1986; Gagey, 1993), ou talvez até compensando de certo modo as alterações dos campos visuais já citadas (cf. tb. Martins da Cunha, 1983). Estas poderiam ter uma primordial importância, já que interferem grandemente no feedback exercido pelas entradas de informação do sistema postural, na regulação do equilíbrio (desde o momento em que a própria cabeça adquira compensatoriamente um posicionamento assimétrico, o S.N.C. terá que se “adaptar”, introduzindo uma “correcção” na informação que lhe vem do sistema vestibular, todavia incongruentemente com o real posicionamento das três direcções do espaço). Corrigir-se-iam em suma, persistentemente, os factores que conduzem no dia a dia aos erros inconscientes de posicionamento do indivíduo, compatibilizando entre si as diversas informações – visuais, proprioceptivas e até mesmo vestibulares – que serão presentes como input a processar no sistema postural (Gagey, 1993), assim se conseguindo melhorar também o respectivo output – tanto em termos cognitivos como psicomotores – a ponto de serem correspondentemente ajustadas as diversas acções que dependem destes diversos sistemas de entrada e processamento da informação.
Não somente a psicomotricidade, como também a postura, sem dúvida que ambas dependem do processamento da informação sensorial em diferentes modalidades, a saber: a informação proprioceptiva, a informação vestibular e a informação visual (cf. tb. Martins da Cunha, 1983). É essa a razão de ser das melhorias observadas no Síndrome de Deficiência Postural por acção deste tipo de abordagem terapêutica. Nos casos tratados de Pinto de Almeida (1993), houve não somente uma notável melhoria sintomática com completo desaparecimento das queixas e mudança para uma atitude postural muito mais simétrica e ajustada, como também se registaram aparentes benefícios sobre o equilíbrio e a função vestibular, os campos visuais e inclusive certas funções cognitivas (atenção, memória, organização verbal do pensamento). Em nossa opinião, uma maior harmonia e sintonia na actividade dos hemisférios cerebrais poderia explicar tanto as melhorias na semiologia física como na semiologia psicológica, a qual aparentemente se mostrou também sensível ao tratamento. Uma reorganização do input da informação sensorial seria, em suma, susceptível de afectar favoravelmente o seu próprio processamento.
II. UM TRATAMENTO POSTURAL PARA A DISLEXIA?
Mas dependeria a própria leitura igualmente destas entradas de informação, a ponto de ser apreciavelmente beneficiado um défice específico desta capacidade por aquele mesmo tipo de intervenção terapêutica? Foi o que Pinto de Almeida (1993) se dispôs a estudar. Concebeu para este efeito diversas baterias de testes de leitura que passou primeiro antes de iniciado e depois findo o primeiro mês de tratamento, segundo uma metodologia geral de teste-reteste . Havia com efeito uma melhoria real nos desempenhos de leitura, registando-se progressos com significado estatístico em diversas medidas colhidas em diferentes parâmetros leximétricos (a velocidade de leitura, medida em palavras por minuto; a correcção, avaliada em função do número de erros; e a compreensão, cotada em questionários de interpretação formulados em perguntas de escolha múltipla acerca dos textos que tinham sido lidos).
Posteriormente a este estudo, Graciete Serrano e Orlando Alves da Silva (1998) deram já a conhecer os resultados que obtiveram com um tratamento muito sobreponível (por vezes complementado através da execução dum programa de treino psicomotor ou do uso de palmilhas que coadjuvam o restante tratamento postural) num número muito mais substancial de casos, que têm avaliado por meio de diferentes baterias de testes psicológicos e de observações diversas, as quais incluem desde os progressos na ortografia e na qualidade da escrita até normalização da coordimetria direccional (Alves da Silva, 2001) e mudanças muito assinaláveis no padrão da actividade bioeléctrica em ambos os hemisférios, os quais na cartografia cerebral (“ brain- mapping”) antes do tratamento se mostram muitas vezes invadidos por potenciais de alta voltagem nas regiões de ondas de baixa frequência e posteriormente parecem de facto normalizar-se a este respeito. No tocante aos exames psicológicos, o modo de execução da figura complexa de Rey, por exemplo – tanto reproduzida à vista como de memória – interessa-lhes muito, nomeadamente para a avaliação dos sujeitos em termos de percepção e organização do espaço, parecendo inegáveis também as melhorias a este nível. Não dispomos, infelizmente, de resultados leximétricos que atestem quer o diagnóstico de dislexia, quer os progressos na leitura em si – embora seja verosímil que as disortografias e disgrafias documentadas por estes autores, bem como a sua aparente melhoria, traduzam muitas vezes casos de dislexia com S.D.P. associado que mostraram uma boa resposta dos desempenhos escolares ao tratamento instituído para o síndrome postural.
Se se confirmar que seja esse o caso, resta ainda saber qual a interpretação que deveremos dar a estes achados. Serrano e Alves da Silva concluem de imediato que a dislexia resulta duma disfunção no sistema proprioceptivo (inclusive ao nível dos músculos oculomotores conforme enfatiza Alves da Silva, 2001), provocada por erros sistemáticos e estereotipados de posicionamento do corpo, dos quais o indivíduo não tem consciência – disfunção esta que tem igualmente uma repercussão perceptiva e cognitiva, a qual, comprometendo as capacidades de leitura, estaria na origem da dislexia. Estes autores pensam mesmo que os defeitos de migração neuronal que têm sido documentados, nomeadamente em desorganizações da citoarquitectura e ectopias corticais típicas do cérebro disléxico, só chegarão a precipitar a dificuldade específica de aprendizagem da leitura no contexto desta disfunção proprioceptiva de base (por isso, segundo Alves da Silva, não se trata verdadeiramente de doença orgânica): conquanto possa também ser necessário um apoio psicopedagógico especializado, com exercícios intensivos de leitura (o cérebro disléxico nunca foi capaz de descodificar em boas condições a informação escrita devido a “bloqueios parciais induzidos pela perturbação funcional do sistema proprioceptivo”), a abordagem postural parece-lhes imprescindível, uma vez que, nas suas palavras, é muitas vezes suficiente “reduzir a intensidade da agressão para obter a cura”.
Permitimo-nos discordar destes autores em diversos pontos. Em primeiro lugar – já o dissemos – todas provas psicológicas que Aura Montenegro (1974) procurou igualmente estudar no disléxico, quase até à exaustão, podendo embora ser importantes na prática com vista à perfeita caracterização pessoal de cada caso, são na realidade inespecíficas, e somente um teste de avaliação do nível de leitura acerca do qual exista um mínimo de normas poderá objectivar o diagnóstico, sem o que não será possível dizer que haja seguramente uma dislexia propriamente dita em ligação com as disortografias que Serrano e Alves da Silva (1998) efectivamente documentam em associação com alterações posturais. Por maioria de razão nos parece excessiva a afirmação de que “ la dyslexie n'existe pas comme entité clinique isolée" (Alves da Silva, 2001). Na nossa experiência, e embora pareça com efeito bastante frequente a associação de dislexia com S.D.P., não é de modo algum excepcional a dislexia isolada. Essa não responderá evidentemente a um tratamento postural! Também há síndromes posturais que não se acompanham de dificuldades de aprendizagem da leitura. Não somos portanto de opinião que o S.D.P. conduza à dislexia, antes nos parece que os dois resultam ou podem resultar duma mesma dislateralidade neurobiológica de base.
Não estamos em crer, por outro lado, que seja defensável uma dicotomia estrutural Vs. funcional como a que parece subjacente ao raciocínio de Serrano e Alves da Silva (op. cit., 1998): para nós, não se trata de encarar com fatalismo como inultrapassáveis as alterações anatómicas e microscópicas do cérebro disléxico procurando a solução na correcção da disfunção proprioceptiva que ocasionaria os sintomas. Os fenómenos de plasticidade neuronal mostram bem que estrutura e função são solidárias. Foi já cabalmente demonstrado, por exemplo, em mulheres portuguesas, que o cérebro analfabeto é tanto anatómica como fisiologicamente diferente do cérebro alfabetizado, ocorrendo quer mudanças de âmbito morfológico, quer mudanças ao nível do processamento quando introduzimos a alfabetização, e isto inclusive na idade adulta (cf. Castro Caldas, 2000). O cérebro do indivíduo que sabe ler exibe por exemplo, geralmente, um corpo caloso mais volumoso, e recruta para as actividades cognitivas áreas distintas – tem, digamos assim, um estilo diferente de processamento, sem dúvida mais rico em especializações hemisféricas – quando posto em comparação com o cérebro do que não aprendeu a ler. Isto traduz sem dúvida a formação de novas sinapses e a mielinização de certas vias nervosas em resposta ao processo de ensino - aprendizagem numa actividade tão complexa como a leitura o é.
Os modelos de aprendizagem oriundos da experimentação animal podem auxiliar-nos igualmente na compreensão deste tipo de fenómenos. Fernando Nottebohm, por exemplo, estudou os efeitos comportamentais da secção cirúrgica de nervos periféricos dum e doutro lado, demonstrando que até nas aves canoras é patente uma especialização funcional dum dos hemisférios para actividades aprendidas, como o canto. Mas sabemos por outro lado que, tanto em aves como em roedores e até em primatas como o macaco Rhesus , estão inclusive documentados fenómenos de migração neuronal maciça, também em resposta à aprendizagem. Só para darmos um exemplo, lembremos que o canário-fêmea adulto, por exemplo, em certas estações do ano, se mostra capaz de modificar a estrutura fónica dos seus chamados vocais com vista a interagir com outras aves cujo canto imita, tendo sido demonstrado por estudos microscópicos de células neurais marcadas com radioisótopos que isso sucede na mesma ocasião em que no seu cérebro o “núcleo vocal do canto” aumenta extraordinariamente de dimensão à custa de neurónios em migração a partir dos neuroblastos que lhes deram origem e que se localizam a uma certa distância daquela estrutura, desta feita em plena região peri-ventricular – neuroblastos estes sujeitos a replicação aparentemente em resposta à própria estimulação ocasionada por aquele processo de aprendizagem (S. Goldman e F. Nottebohm, 1983). Como não sucederá – perguntamos – no cérebro do homem, em resposta a um processo de aprendizagem tão exigente como o é o da leitura? Conquanto seja difícil, convenhamos, estudar estes processos na espécie humana, podemos admitir que os defeitos de migração neuronal que têm sido documentados no síndrome disléxico se resolvam também, em grande parte, no decurso duma reabilitação e reeducação bem sucedida. A resultante final deste processo será uma melhor partilha das actividades de ambos os hemisférios, designadamente nas tarefas de leitura.
Num ponto estamos de acordo com Serrano e Alves da Silva: torna-se imprescindível corrigir os factores que precipitam a manifestação do quadro clínico, e isso poderá eventualmente ser até mais importante do que trabalhar apenas o sintoma de dificuldade na leitura em si mesmo. Mas aparte os factores precipitantes, torna-se necessário perspectivar a abordagem terapêutica em termos propriamente etiológicos, o que é bastante diferente. Ora, a etiologia do síndrome disléxico é múltipla, incluindo desde causas genéticas (num contexto de hereditariedade poligénica multifactorial de expressividade variável), causas embriológicas e peri-natais (sofrimento fetal, prematuridade, baixo peso ao nascer, índice de Apgar diminuído nos primeiros minutos, icterícia neo-natal são comuns nos antecedentes dos disléxicos), até causas ambienciais e desenvolvimentais ou até escolares (o método global, é sabido, aumentou a incidência da dislexia em países como a França). Mas pode ter-se como certo – disso estamos plenamente convencidos – resultarem todas estas diferentes causas num mesmo quadro de imaturidade cerebral: uma “ disfunção cerebral mínima ” (cf. Touwen, 1982), digamos assim, que se traduz pela já mencionada dislateralidade neurobiológica na qual reside em nosso ver, conforme já ficou dito, o nexo fisiopatológico fundamental para a compreensão da dislexia.
Na casuística de Pinto de Almeida (1993), somente num caso havia uma forte presunção de terem os defeitos posicionais condicionado este tipo de disfunção: J. M., uma jovem então com 16 anos de idade, tinha uma anisometropia muito pronunciada desde pequena, o que claramente a obrigava a posicionar-se, já em idade pré-escolar, por forma a fixar os objectos com o “olho bom” (o de menor correcção refractiva, neste caso o direito); desenvolveu assim uma atitude escoliótica que lhe condicionava pronunciadas raquialgias e uma posição cefálica discreta mas persistentemente inclinada sobre um dos lados, o que certamente lhe ocasionaria também alguma disfunção vestibular. Foi neste contexto, efectivamente, e sem nenhuns outros antecedentes familiares ou pessoais – pré ou pós-natais – relevantes, que desenvolveu a sua dislexia. Poderemos supor que uma desestruturação continuada da informação visual, proprioceptiva e vestibular, não congruente dum e doutro lado, condicionou um processamento hemisférico tão deficitário que uma actividade tão complexa como a leitura se tornou tarefa hercúlea. Em dois outros casos, também de dislexia com S. D. P. associado – duas irmãs, aliás – era notório o passado familiar de numerosos casos de dificuldade de leitura, e isto apesar de serem muito pesadas as manifestações posturais propriamente ditas em ambas. Duas outras moças exibiam dislexia e S. D. P. sem que se pudesse dizer que qualquer uma das situações precedesse a outra, de tantas que eram as condições desenvolvimentais acidentadas e particulares num e noutro caso. E assim por diante… Não se pode dizer que haja uma regra pela qual as manifestações e defeitos posturais conduzam à dislexia, como não há regra inversa pela qual seja a dislexia que condicione o desenvolvimento de um síndrome postural.
Pretendemos aqui realçar que o diagnóstico da dislexia como tal somente poderá ser levado a cabo já em idade escolar, mas o síndrome pré-existente – aquele que igualmente condiciona frequentes atrasos de linguagem ou mesmo disfasias infantis na história pregressa, bem como toda uma constelação de “ soft-signs ” neurológicos – esse quadro clínico global que afecta a pessoa do disléxico vem provavelmente muito de trás. Esse é essencialmente – voltamos a sublinhar – um quadro de dislateralidade. É todo um desenvolvimento disfuncional ao nível da percepção, da cognição, da psicomotricidade, quiçá da afectividade (“ personalidade disléxica ”?), que se vai (des)organizando a ponto de ocasionar, chegada a escolaridade obrigatória, os desempenhos alterados nas actividades de ensino-aprendizagem envolvendo a leitura e a escrita. Mas na base, em todas essas esferas, está uma disarmonia das funções hemisféricas.
Dito isto, o uso da reprogramação postural e dos prismas ópticos na reabilitação da dislexia parece-nos justamente agir de modo muito favorável sobre aquela disfunção logo ao nível do input de informação que chega ao sistema nervoso. Mas não seria este o único meio, visto que há outros inputs relevantes sobre os quais podemos operar também com certo êxito (ex. a duração dos estímulos acústicos, tanto verbais como não-verbais, nas baterias computorizadas propostas por P. Tallal et al., 1998), e os próprios métodos clássicos de reeducação (ex. Borel-Maisonni, 1985) optimizam frequentemente o input em contextos de leitura, fazendo-o inclusive numa base multi-sensorial. Alguns atacam de frente, claramente, a questão das dificuldades de orientação lateral no disléxico, conforme é o caso nas propostas de “leitura vertical” (Drévillon & Drévillon, 1983). Além disso estamos hoje em dia, em nosso ver, aptos igualmente para interferir directamente com o próprio processamento hemisférico: as medicações nootrópicas (Wilsher, 1987) e a estimulação hemisférica específica (Bakker et al., 1990) são um bom exemplo disto; nem as propostas de reeducação actuais (cf. Serra, 2002) se mostram insensíveis ao contexto geral do processamento cognitivo no cérebro disléxico, e muitos dos exercícios que vão sendo propostos, seja voluntariamente ou não, terminam por articular a actividade de ambos os hemisférios. O output , finalmente, poderá também ser coadjuvado, conforme já sucedia na própria reprogramação postural (esta modifica tanto o input como o output do sistema postural), mas também, por exemplo, nas técnicas de leitura correctiva (cf. Condemarín e Blomquist, 1989): trabalharemos neste caso quer com as estratégias de leitura do hemisfério direito (ex. a leitura global, por reconhecimento visual), quer com as do hemisfério esquerdo (ex. a leitura decifrativa e sequencial assente nas correspondências grafofonológicas). Pinto de Almeida (1993; 2003) mostrou também, finalmente, como poderemos interpretar as particularidades da personalidade do disléxico em relação com as especificidades do seu processamento cognitivo, como resultante duma disarmonia geral das funções hemisféricas; neste modo de ver, intervenções psicoterápicas que têm sido propostas, como as que recorrem por exemplo à programação neurolinguística (Bandler e Grinder, 1979), podem ser igualmente equacionadas enquanto meios de reequilibração das sintonias e sinergias hemisféricas (a linguagem metafórica, por exemplo, que tão poderosa é ao nível do inconsciente, solicita o funcionamento do hemisfério cerebral direito – cf. Frackowiak e Frith, 1994, num estudo em PET). Haveria, em suma, diferentes meios de agir sobre as disarmonias hemisférias do cérebro disléxico; este funciona como um todo, e os diferentes sistemas – o da visão, o da propriocepção, etc. – influenciam-se reciprocamente e detêm complexas interconexões, com feedback múltiplos e a diferentes níveis, pelos quais input , processamento e output interferem também entre si. Eis a razão pela qual se podem usar muitas vezes com sucesso diferentes meios terapêuticos e estes são capazes de se coadjuvar e de se potenciar mutuamente na abordagem global do disléxico.
III. CONCLUSÃO: POR UM TRATAMENTO INTEGRADO DA DISLEXIA
Resulta de quanto foi dito que, não estando ainda convenientemente aferido um teste de nível de leitura para o português europeu, o tratamento postural da dislexia continua por agora entre nós numa fase meramente exploratória, constituindo portanto uma terapêutica ainda experimental. O primitivo estudo de Pinto de Almeida (1993) lidou com poucos casos, mas os trabalhos que se lhe seguiram descuraram com frequência a questão do diagnóstico do nível de leitura. Seria necessária uma estatística rigorosa tanto ao nível dos quadros clínicos objectivamente considerados e sua associação como da própria eficácia terapêutica: em condições ideais, por exemplo, e para uma cabal exploração de cada técnica, deveria ter-se testado em separado a eficiência sobre a leitura de cada uma das intervenções até agora usadas em combinação – o que também ainda não foi feito. Por outro lado, e não obstante o facto de Serrano e Alves da Silva (1998) terem lidado essencialmente com os mesmos meios terapêuticos que nós mesmos experimentámos, concedem-lhes uma primazia absoluta com a qual tampouco estamos de acordo: embora o insucesso das diferentes abordagens de reabilitação seja efectivamente apreciável, conhecemos inúmeros casos bem sucedidos por recurso a metodologias muito distintas, e por vezes até simplesmente com persistência, mas sem recurso a uma técnica especializada em particular. Estamos em crer que, quaisquer que sejam os meios utilizados, estes potenciam-se entre si e mostram-se efectivos, tanto sobre a dislexia como sobre o S.D.P. associado, desde o momento em que permitam harmonizar a informação presente aos dois hemisférios cerebrais.
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