[«Livros na Mão», «A Capital», 11-9-1990] [24/8/1990] - A reabilitação póstuma de Paracelso, que teve o seu auge ao longo de todo o século XIX, assenta afinal em bem pouca coisa, a julgar por uma leitura retrospectiva das suas obras: um punhado de intuições fulgurantes, aquém e para além do tempo, é talvez o que resta de uma obra que, em vida do autor ( 1493-1521), foi sistematicamente vilipendiada pelos invejosos da época, inclusive pelos mais dilectos discípulos como esse misterioso Oparinus, canalha que assume o recorte refinado do clássico traidor. Como se para cada Jesus tivesse sempre que haver um Judas. E a verdade é que, em certos aspectos, Paracelso até nem era nenhum santo.
Resta dele, hoje, portanto, a lenda que se vai formando quando são grandes as lacunas na vida e na obra de um autor: Paracelso é também o mito que dele fizeram as dezenas de obras sobre a sua personalidade controversa, surgidas pró e contra, nos mais diversos países da Europa, durante o século XIX.
Entre as intuições que se podem citar a título de exemplo, que nele assinalam um «contemporâneo do futuro» e que dele fazem um profeta só tardiamente reconhecido como tal, é de sublinhar a que escreveu sobre a predestinação, na qual desenvolve uma ardilosa «teoria do castigo divino como causa das enfermidades», teoria que coincide, em muitos pontos, com a lei cármica das cosmogonias orientais (hindu, tibetana, chinesa) mas que no Ocidente, quer pela via greco-latina, quer pela via judaico-cristã, foi sempre letra morta.
Esta «teoria do castigo divino» é claramente desenvolvida por Paracelso em uma das raras obras suas que não se perderam, o «Tratado da entidade de Deus» , aparecido no «Quinto Livro, não pagão, acerca das entidades morbosas» incluído no segundo «Paramirum» (o primeiro foi um dos muitos livros seus que se perderam).
A reabilitação em força de Paracelso, poderá dever-se, portanto, ao facto de ele ter, numa cultura analfabeta e sórdida, introduzido alguns conceitos que, sendo lugares-comuns na sabedoria universal, sempre se ignoraram numa cultura como a ocidental, caracterizada pelo puro analfabetismo e pela mais dessorada e arrogante das ignorâncias.
TRADUZIR PARACELSO
Traduzir para a língua portuguesa, em 1990, o «Livro das Ninfas, Silfos, Pigmeus e Salamandras e de Outros Espíritos» deveria entender-se, portanto, como um primeiro contributo para o conhecimento do desconhecido Paracelso. Só que não é. Tratando-se da parte «morta» de um autor que tem, no entanto, muita coisa ainda viva para mostrar(as tais intuições acima referidas), esta tradução deverá funcionar apenas com objectivos de erudição, como actualização para os estudantes e estudiosos de artes e letras. Fica, entretanto, por conhecer o precursor de algumas banalidades de base que tanta falta continuam fazendo na cultura ocidental.
A tradução de Paracelso, agora empreendida, funciona assim no âmbito estritamente universitário, com o objectivo de rever matéria dada e fornecer fontes bibliográficas fidedignas pouco acessíveis aos alunos de Letras, eruditos, investigadores e especialistas, necessitados de quem lhes facilite e tarefa.
Neste contexto, o livro de Paracelso agora editado em língua portuguesa pela Cooperativa de Serviços Culturais « A Páginas Tantas», com um estudo minucioso de Teolinda Gersão, onde principalmente se assinala o papel de Paracelso no posterior surto romântico que assolaria a Europa, como um solene aviso das fontes a que era urgente recorrer, poderá dizer-se que vem preencher uma lacuna na cultura escolar do ensino superior em Portugal. Mas a sua actualidade é nula. Nada, nesta narrativa meio filosófica, meio fantástica, tem hoje qualquer funcionalidade, deixando portanto ao leitor comum uma imagem distorcida do Paracelso essencial, do Paracelso (ainda) vivo.
Aliás, Teolinda Gersão, no cuidadoso estudo que lhe dedica, faz notar neste «Livro das Ninfas» a linguagem «monótona e pouco clara, enredando-se num estilo pleonástico ou sinonímico, em que o pensamento avança devagar».Eu até diria que não avança mesmo e a sensação, ao lê-lo, é de que não saímos do mesmo sítio. Para dar uma ideia do que em Paracelso houve de efectivamente precursor e profético, do que ainda nele é vivo a actual e actuante, seria necessária uma recolha antológica selectiva, em função do futuro que Paracelso efectivamente antecipou em muitos aspectos e não em função de um passado irremediavelmente morto que outros dos seus escritos acusam, como é o caso destas ninfas.
Aliás, nunca seria pelo estilo que Paracelso desempenharia algum papel na literatura europeia, nem mesmo como um catalisador da explosão romântica. Se houvesse uma história das grandes intuições que faltam à humanidade ou um itinerário das chamadas grandes aventuras espirituais, era lá que se poderia meter Paracelso.
Contemporâneo de alguns outros mitos, muito bem tratados, por motivos ideológicos ou outros semelhantes, pela erudição oficial - Erasmo, Ambrósio Pareo, Lutero, Copérnico, Miguel Ângelo - é inegável que Aureolus Filippus Teofrasto Bombasto de Hohenheim, a começar no nome que seu pai, o médico Hohenheim, se lembraria de lhe dar, não tem nada que o recomende.
Como se explica então o mito Paracelso?
Talvez a resposta esteja, não no «Livro das Ninfas», divertimento a que ele se consagrou certamente para desviar as atenções dos inimigos, mas na biografia de Paracelso que ainda não foi contada e de que o odioso Oporinus pode ser a chave alquímica. Há filósofos que permanecem malditos, mesmo depois de (aparentemente e superficialmente) reabilitados. Mas, como acontece com Paracelso, quanto mais malditos mais fascinantes. Não vão é dizer isso aos alunos da Faculdade de Letras, coitados, que têm de passar nos exames e com boas notas. Cuidado, Paracelso. Cuidado com o Paracelso.
(*) «Livro das Ninfas, Silfos, Pigmeus e Salamandras e de Outros Espíritos» , Paracelso, com apresentação de Teolinda Gersão, Ed. «A Páginas Tantas», Cooperativa de Serviços Culturais. Equipa de tradução: Ana Paula de Carvalho Cunha, Helena Hipólito, Ana Maria Bernardo, Ana Paula Valagão Luz Clara e Helena Paula de Monteiro Leitão
(**) Este texto de Afonso Cautela foi publicado na revista «Beija-Flor», provavelmente na data indicada e republicado em «Livros na Mão», «A Capital», 11-9-1990
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